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terça-feira, 31 de julho de 2012

“Cronicamente Inviável ” de Sergio Bianchi


Um Brasil caótico e hipócrita é o retrato pintado por Sérgio Bianchi em “Cronicamente inviável”. Um Brasil nojento em que ninguém se salva de sua culpa, onde as relações de opressor e oprimido estão expostas a toda prova tendo como ponto de interseção o restaurante de Luiz (Cecil Thiré).

Seis personagens centralizam o filme. Luiz é um homem refinado que acredita na civilidade e nas boas maneiras como forma de se resolverem os problemas. Amanda (Dira Paes) é a gerente de seu restaurante, uma mulher de origem pobre que incorpora a ética e os costumes burgueses. Adam (Dan Stulbach) é um sulista descendente de poloneses que vai trabalhar como garçom no restaurante. Maria Alice (Betty Goffman) é uma mulher de classe média alta que se compadece com as injustiças sociais. Seu marido Carlos (Daniel Dantas) é um economista que acredita na racionalidade e no pragmatismo do capitalismo. Por fim, Alfredo (Umberto Magnani) é um pesquisador que viaja pelo Brasil procurando compreender e refletir as relações de dominação e opressão.

O que mais gostaria de chamar a atenção com relação ao filme são as reflexões em off dos personagens recheado de diversas frases e idéias mais facilmente encontradas em livros do que ditas em cinema. “A felicidade é uma perfeita forma de dominação autoritária” reflete Alfredo ao analisar o torpor da população baiana que, mesmo se submetendo à intensa exploração de sua força de trabalho, comandada por uma burguesia que combina o velho coronelismo com a neotecnocracia, é “dominada” por uma boa caixa de som que toque o hit do momento. Contudo, essa indústria cultural será seccionada por classe. Existe a micareta com o trio elétrico, desfrutado por turistas estrangeiros e pela juventude abastada do Sudeste e a “pipoca”, lugar em que milhares de festeiros se espremem e se acotovelam com o intuito de também “curtir” o som e ainda apanham da Polícia e dos seguranças contratados para protegerem a propriedade territorial privada.
Outra reflexão do personagem Alfredo: “O que é mais importante explicar a realidade ou convencer? A ausência de civilização pode ser boa. Se não há civilização, há barbárie. A lógica indutiva me assusta porque ela acaba com a indignação”. Nesse momento, um índio é espancado por dois policiais porque apesar de estar tranqüilamente aproveitando o sol da Praia do Perequê, “logicamente” esse sujeito é um traficante ou um delinqüente.

Carlos representa a encarnação do pensamento da instauração da “saudável” desigualdade social de Hayek como forma de fazer com que os homens procurem ascender sua condição social. Ao repreender um desleixo da empregada doméstica, ele diz que “A lei do menor esforço é que mantém o mundo, deve-se manter as pessoas em permanente tensão”. Logo após, o diretor monta um take em que mostra que as relações sociais de exploração de trabalho entre a sua esposa e da empregada doméstica já se repetem por 3 gerações. Se Carlos tivesse que explicar, ele certamente diria que a empregada e seus entes sempre foram acomodados e relapsos.

Enquanto que Carlos segue praticando o trambique já que ele estaria “institucionalizado pela lei brasileira”, sua esposa pratica a caridade como forma de aliviar sua culpa pela situação de desigualdade econômica no país. Maria Alice contesta na aparência o neoliberalismo por abandonar a assistência à população e defende as ações de solidariedade em favor do alívio à pobreza e a iminente morte. Para ela, “se é (menores de rua) para morrerem por abandono, que morram entorpecidos de frágil felicidade”.

“Contradição social é uma mera questão de estilo de vida” conforme Luiz. Se não é possível resolvermos os problemas que latejam à nossa frente, porque não aproveitá-las para nosso favor? Quem sabe atraindo turistas para desfrutar das belezas naturais e da prostituição brasileira? Ou ainda montando e gerenciando um grupo musical de ex-menores de rua que tiveram sua “cidadania” resgatada ao se apresentarem em palcos do hemisfério norte?
Adam representa o caos no filme. Subverte a etiqueta do restaurante, questiona as ordens de sua chefe imediata, embriaga-se seguidamente e prega o terrorismo como forma de luta contra os patrões. Acaba despedido e preso pela polícia por incomodar o ex-patrão e incitar a violência.
Entendo que Sérgio Bianchi não procurou oferecer respostas prontas aos problemas levantados, mas a importância de um filme como “Cronicamente inviável” se dá em convidar o espectador à reflexão sobre até aonde contribuímos para a manutenção do status quo, mesmo que assumamos posturas críticas ou revolucionárias frente à situação que constatamos à nossa frente todos os dias. O filme critica o pensamento tipicamente pós-moderno de não conferir nenhum grau de teleologia e objetivos às suas reflexões, mas a uma mera constatação da realidade. Até porque assim é mais fácil obter financiamentos dos órgãos de fomento e da iniciativa privada (também para suas campanhas políticas).

Por fim, Bianchi expõe a usurpadora ética burguesa de educar e preconizar a honestidade como um dos pilares necessários para o funcionamento harmonioso da sociedade, ao mesmo tempo em que seus representantes utilizam o Estado para obter concessões, subsídios, renegociações/calote de dívidas, refinanciamentos. Uma mendiga recita, sinceramente, o salmo 23 do Novo Testamento a seu filho. “O Senhor é meu Pastor e nada me faltará” e explica que Deus nunca vai deixar que falte nada a ele. Apesar de serem pobres, acima de tudo devem ser honestos. Assim, o Brasil segue sendo uma “crônica inviável”.

Bruno Gawryszewski
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação pela UFRJ
e pesquisador do Grupo de Estudos em Trabalho, Educação Física
e Materialismo Histórico da UFJF)
(2006)
Fonte: http://www.telacritica.org

Quanto vale ou é por quilo?




Quanto vale ou é por quilo? 
 Direção: Sérgio Bianchi (2005) 

Por Marta Kanashiro "O que vale é ter liberdade para consumir, essa é a verdadeira funcionalidade da democracia". 
Proferida pelo ator Lázaro Ramos – em "Quanto vale ou é por quilo?", filme de Sérgio Bianchi – a frase traz uma entre as muitas questões apresentadas pelo cineasta paranaense, que são fundamentais para aqueles que desejam refletir mais seriamente sobre desigualdade, direitos e capitalismo na atualidade. 
Assim como em "Cronicamente inviável", Bianchi apresenta a realidade de forma tão crua e chocante que novamente a crítica o tem rotulado como niilista ou catastrofista, rótulos que tanto limitam a visão de realidades de fato existentes, quanto revelam o desejo de continuar mantendo-as recalcadas. Bianchi parece nos dizer que é impossível ficar diante ou atento a essa realidade de disparidades sem o choque ou o constrangimento, e que talvez essas sensações sejam de alguma forma produtivas para tirar algumas pessoas de um mundo mágico, recheado de slogans em prol da solidariedade e da responsabilidade social. 
 Livre adaptação do conto "Pai contra mãe" , de Machado de Assis, o filme traz à tona a permanência na atualidade de nosso passado escravista, deixando clara a impossibilidade de olhar o presente sem levar esse passado em conta, assim como as persistentes desigualdades econômicas, sociais e de direitos no país. Na medida em que o conto machadiano é adaptado para a atualidade – nas figuras de Candinho, Clara, tia Mônica e Arminda – Bianchi mostra o elo imprescindível com a História para uma visão crítica da atualidade. No entanto, para aqueles que ainda não leram o conto de Machado de Assis, o elo fica realmente claro quando Bianchi utiliza como recurso os paralelos com as crônicas de Nireu Cavalcanti, do final do século XVIII, extraídas do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. 
Os cortes entre a adaptação do conto e esses documentos do Arquivo Nacional produzem quase que choques sucessivos no espectador, na medida em que igualam a violência, a noção de que pessoas podiam ser propriedade de outras, ou a lógica do lucro do sistema de escravidão no Brasil, ao que hoje é produzido com relação aos excluídos e marginalizados em nossa sociedade. Mas se por um lado o filme afirma que há reminiscências que nos são constitutivas, também abarca sua incorporação e complexificação nos dias atuais: a miséria ou a prisão como economicamente rentáveis e geradoras de emprego, a solidariedade como empresa ou até mesmo a denúncia como um negócio. 
No atual jogo "democrático" e de "participação" da sociedade civil em prol de demandas não atendidas pelo Estado, as ongs - ou o terceiro setor, como se convencionou chamar - aparecem no filme funcionando como empresa, incorporando seu discurso típico e objetivando, enfim, o lucro. Responsabilidade social ou solidariedade são exaltadas e mobilizadas como marketing dessa nova indústria que gerencia a miséria e os miseráveis. A crítica ácida de Bianchi recai, portanto, sobre aquilo que muitos têm entendido como solução ou alternativa para os dilemas inerentes ao capitalismo – as ONGs. 
Sem freios, tal acidez pode voltar-se inclusive sobre o próprio filme que, no limite, ao tematizar o uso econômico da miséria, faz da denúncia seu negócio. Mas essa possível autofagia encontra como limite o choque do espectador, a proposta de retirá-lo daquele mundo mágico, da inércia confortante dos que criticam e apresentam uma nova proposta ou solução ao final. 
Sem solução, sem proposta, Bianchi termina o filme com dois finais possíveis, dando a entender que mesmo que não sejam apenas aquelas as opções, é o espectador que dará novos desfechos para a nossa História. Ao final da sessão, na sala 4 do Espaço Unibanco, na capital paulista, a platéia parecia não conseguir se erguer das poltronas, o silêncio era fúnebre, de fato alguém tinha retirado o nosso chão. Precisávamos reconstruí-lo para poder nos erguer. 
Uma dupla de senhoras tentou resolver a questão da forma mais fácil dizendo: "O filme é pura promoção do conflito". Pois é, ficou tudo tão evidente que para alguns é preferível imaginar que o conflito ainda não está posto no cotidiano brasileiro.
Fonte: http://www.comciencia.br